A lenda é contada de várias maneiras, mas todas têm um final parecido. A filha de um cacique Potiguara se apaixonara por um guerreiro da nação Cariri, que havia sido aprisionado e condenado à morte por sua tribo. Inconsolável com o sacrifício do seu amado ela se internou na mata e chorou durante cinquenta luas e as suas lágrimas alimentaram uma vertente de água que terminava em uma fonte a qual deram o nome de Tambiá, em referência ao indígena que fora sacrificado.
Em 1782, por meio de subscrição popular, segundo o historiador Coriolano de Medeiros, foi construída no local uma “bica” da qual se retirava água através de três torneiras de bronze. A fonte recebeu reformas na segunda metade do século 19 e, em 1890, Vicente Gomes Jardim, agrimensor do Estado, escreveu na sua “Monographia da Cidade da Parahyba do Norte:
“Essa fonte fallada em quazi todo Brazil, é de uma água sem rival […] É uma vertente de grande força e posso dizer sem medo de errar que metade da população da cidade se abastece com a sua água”
Em 1921, na administração do Prefeito da Capital Walfredo Guedes Pereira, o local onde estava instalada a “Bica do Tambiá” foi transformado em um grande logradouro público com o nome de Parque Arruda Câmara, em homenagem ao notável naturalista brasileiro, embrião do atual espaço zoobotânico da Capital da Paraíba.
Da mesma forma que a fonte que originou o parque que tem o seu nome, sobre a vida de Arruda Câmara existem, também, várias lendas. Para o escritor Luiz da Câmara Cascudo, Manuel Arruda da Câmara (era assim que se escrevia o seu nome) que era “médico, botânico, filósofo, naturalista e estudioso de todas as curiosidades” deixou “vestígio impressionante de sua atividade contínua”, mas Câmara Cascudo ressaltava a dificuldade na reconstituição da sua vida:
“Sua biografia é nevoenta e difícil e a tradição oral deforma, dando-lhe aspectos de iluminado precursor de reformas sociais, profeta e fundador de uma escola de filósofos”.
Essa névoa que cobre a vida de Arruda da Câmara fez com que em torno dele fosse sendo fiado “um tecido de lendas” e “fabricadas tantas invenções” que passaram a ser aceitas e reproduzidas, sem questionamentos, por muitos escritores, mas que não têm nenhuma sustentação documental ou mesmo fática”, conforme afirma o conceituado historiador José Antônio Gonsalves de Mello.
Em 1982, a Fundação de Cultura Cidade do Recife publicou uma obra contendo todos os escritos de Arruda da Câmara que eram até então conhecidos. Os estudos foram coligidos, com o acompanhamento de um alentado estudo biográfico elaborado por José Antônio Gonsalves de Mello, que fez questão de ressaltar que a vida do cientista “debastada desse tecido de fraudes, falsidades e suspeições” não diminuirá a “importância do Naturalista e do homem público na História brasileira”.
Uma das mais pitorescas falsidades que envolvem a figura de Arruda da Câmara se refere a uma “fotografia” do naturalista, publicada até em obras de autores respeitados como Oscar de Castro, no seu livro “Vultos da Paraíba” e afixada na galeria da Academia Paraibana de Letras, da qual Arruda da Câmara é um dos patronos. Não haveria qualquer problema na existência de uma fotografia do cientista se a técnica fotográfica já houvesse sido inventada durante a sua vida.
As primeiras fotografias que foram feitas no mundo datam de mais de quinze anos depois da morte de Arruda da Câmara.
O local e o ano de nascimento de Arruda da Câmara são questões ainda não resolvidas. É possível que ele tenha nascido, em 1752, em Pombal, na Paraíba, ou talvez em Piancó, onde a sua família tinha propriedades e que, na época do seu nascimento pertencia à jurisdição de Pombal. Oscar de Castro, em opúsculo que escreveu sobre o naturalista (Editora A União, 1964) concluiu que: “a elucidação definitiva sobre a naturalidade de Arruda Câmara é assunto ainda a desafiar a argúcia e a boa vontade dos pesquisadores da nossa história”. Mesmo reconhecendo a incerteza sobre a naturalidade de Arruda da Câmara, Oscar de Castro afirmou categoricamente: “Consideramo-lo paraibano”.
Recentemente, a conceituada historiadora portuguesa Maria Beatriz Nizza da Silva, no seu livro “Elites pernambucanas do fim do período colonial” (Editora Singular, 2018), incluiu Manuel Arruda da Câmara e o seu irmão Francisco Arruda da Câmara como pernambucanos que haviam cursado a Universidade de Coimbra e, em seguida, defenderam tese na Faculdade de Medicina de Montpellier, na França. Essa dúvida sobre a naturalidade de Arruda da Câmara foi criada pelo próprio naturalista. Em dois anos seguidos, ele informou, quando da sua matrícula em Coimbra, ser natural “do sertão de Pernambuco”. Na sua matrícula em Montpellier e na folha de rosto de sua tese de doutoramento em Medicina, em 1791, ele se declarou pernambucano (“Emmanuel Arruda, Pernambucanus apud Brasilienses, Liberalium Artium Magister, & jamdudum Medicinae alumnus”).
Outro episódio nebuloso da vida de Arruda da Câmara se refere ao “desaparecimento” dos seus estudos manuscritos. Quando do seu falecimento (em Goiana ou no Recife, não se sabe ao certo), o Governador de Pernambuco determinou a apreensão desses papéis. Para José Antônio Gonsalves de Mello, “infelizmente não é conhecido o destino que teve o espólio científico de Arruda da Câmara […] até agora não foi encontrado em arquivo ou biblioteca oficial”.
Em algumas obras, Arruda da Câmara, além de naturalista, também é identificado como sacerdote, o que não é verdade. É fato, que ele ingressou no Convento da Ordem Carmelita em Goiana, mas conforme Frei Lino de Monte Carmelo, seu primeiro biógrafo, apenas fez o noviciado e alguns votos, mas não ascendeu ao sacerdócio. No primeiro ano de sua matrícula em Coimbra registrou-se como Frei Manuel do Coração de Jesus Arruda, mas nos anos seguintes não mais se apresentou como religioso e, antes de se transferir para a França, solicitou a sua secularização. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, Arruda Câmara, após voltar para o Brasil, influenciado pelas ideias da época, demonstrou “certo desinteresse pela Religião, acompanhado de uma evidente descristianização de sua vida, não invoca o Deus dos Cristãos, mas sim a ‘Divindade’, o ‘Ente Supremo’”.
Talvez o capítulo mais obscuro da vida de Arruda da Câmara seja aquele referente à sua ação política. É inegável a participação do naturalista na divulgação no Nordeste brasileiro das ideias liberais e republicanas originárias da Revolução Francesa, da qual ele chegou a presenciar alguns episódios quando da sua permanência em Montpellier. O nome de Arruda da Câmara aparece em depoimentos tomados na devassa da Revolução Nordestina de 1817 como um dos influenciadores da insurreição. Credita-se, também, a Arruda da Câmara ter sido ele um dos introdutores da Maçonaria em Pernambuco e, principalmente, ter criado o misterioso Areópago de Itambé, “do qual o que se sabe é pouco mais do que nada”, conforme escreveu Wilson Martins na sua “História da Inteligência Brasileira”.
José Antônio Gonsalves de Mello não encontrou qualquer indício de que Arruda da Câmara tenha residido em Itambé e supõe que a narrativa sobre o Areópago tenha a sua origem no prefácio feito pelo historiador paraibano Maximiano Lopes Machado à 2ª edição da “História da Revolução em Pernambuco em 1817” escrita por Muniz Tavares, que foi um dos insurgentes. Maximiano Machado teria tomado conhecimento do Areópago através de “manuscrito do arquivo de Paula Montenegro […] falecido em Goiana em idade avançada” e que teria participado da insurreição de 1817.
José Antônio Gonsalves de Mello coloca em suspeição essa informação de Maximiano Machado já que não existe qualquer referência a nenhum Paula Montenegro na relativamente extensa documentação da devassa da revolução de 1817 e acrescenta que “é estranhável que Lopes Machado, de posse de documentos que considerava ‘interessantes’, nem os tenha divulgado nem a eles se refira posteriormente, nem lhes tenha dado destino. E não deve ser esquecido aqui que Lopes Machado é responsável por falsificação de informação histórica – portanto fideindígno – quando da sua História da Paraíba (publicada postumamente, em 1912)”. Gonsalves de Mello se refere a uma ata da Câmara de Olinda citada por Maximiano Machado que “historiador algum jamais viu tal ata nem ninguém ousou referir o que nela constaria, se é que ela existiu”.
José Antônio Gonsalves de Mello lança, na sua obra, um repto sobre a real existência do Areópago de Itambé e, também, com relação à autenticidade de documentos que são atribuídos a Arruda da Câmara:
“Com a suspeição aqui levantada, o suposto Areópago de Itambé fica a aguardar confirmação de outras fontes, pois ele não tem suporte histórico senão nos papéis de Paula Montenegro, que Maximiano Lopes Machado foi o único a ver e utilizar, se é que os viu. Suspeitos, ainda os apontamentos (1799) para a administração de uma república federativa a ser estabelecida no Nordeste […] e a chamada ‘carta-testamento’ datada de Itamaracá 2 de outubro. Resta, pois, quase nada para se avaliar as ideias políticas de Arruda da Câmara”
José Antônio Gonsalves de Mello, um dos mais importantes historiadores brasileiros, falecido em 2002, era para Evaldo Cabral de Mello “o grão-mestre da história de Pernambuco e do Nordeste”. José Antônio era respeitado pelo rigor das suas pesquisas e, nas palavras do escritor pernambucano Mauro Mota “o que ele diz é, e se não era, fica sendo”. Em 1982 – já faz quarenta anos – José Antônio Gonsalves de Mello, no minucioso estudo biográfico que apensou às obras conhecidas de Manuel Arruda da Câmara, levantou várias incorreções e incongruências acerca da vida do naturalista. Sobre elas caiu um silêncio sepulcral. O que terá ocorrido? Teria sido o “não vamos mexer nisso” para não ter que alterar os livros de História do Brasil na parte que trata daquele período?